Nada justifica o absurdo, muito menos minimiza o crime, no caso da Universidade Santo Amaro

 Nada justifica o absurdo, muito menos minimiza o crime, no caso da Universidade Santo Amaro

Foto: Reprodução/redes sociais

 

Amigas e amigos, é estarrecedor, para dizer o mínimo, acompanhar as notícias sobre os alunos de medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa) que, em gestos e atitudes detestáveis, cometeram crimes – e, sim, são crimes – ao correrem pelados e simularem masturbação durante uma partida de vôlei feminino. Mais grotesco ainda, é encontrar por aí pessoas tentando justificar ou minimizar o absurdo. Explico.

Demorou para que a Unisa tomasse uma atitude contra esses alunos, haja visto que o episódio ocorreu em maio desse ano. E só o fez pois as imagens começaram a estampar as vitrines das redes sociais, vale dizer. Justifico mais adiante o meu ponto. “Assim que tomou conhecimento de tais fatos, mesmo tendo esses ocorrido fora de dependências da Unisa e sem responsabilidade da mesma sobre tais competições, a Instituição aplicou sua sanção mais severa prevista em regimento, ainda nesta mesma segunda-feira (18/09), com a expulsão dos alunos identificados até o momento”, afirmou em nota a universidade.

Agora, analisem junto comigo o hino da atlética do curso de Medicina da instituição.

 

“Xá! Vasca!
Xá! Vasca!
Xavasqui! Xavascá! Xavasqui e acolá!
Enfia o dedo nela que ela vai arreganhar!
O quê? Arre-ga-nhar!
Na rima do pudendo
[termo utilizado na medicina que trata sobre a fissura formada pelos grandes lábios da vagina]
Eu entrei mordendo!
É a Med Santo Amaro que está te fodendo!
Medicina! Santo Amaro! Ôoo!”

 

O tal “hino” vem sendo entoado, no mínimo, desde 2021, quando ocorreu a formatura da 48º turma do curso de medicina da Unisa. Aliás, o hino foi entoado à ocasião por homens e, também, por mulheres. Logo após, fizeram o juramento de Hipócrates. Está documentado em um vídeo postado nas redes sociais. Irônico tudo isso, se antes não fosse trágico. Preciso justificar o quanto isso se encaixa na cultura do estupro que, lamentavelmente, ainda é muito latente em nossa sociedade? Mas não para por aí não, vamos adiante.

Em matéria publicada em 18 de março de 2022, por Ana Paula Bimbati e Gustavo Brito, no UOL, denúncias já vinham sendo feitas com relação à cultura de abusos cometidos em trotes justamente no curso de…? Isso mesmo, medicina. “Tapas, socos e cuspe no rosto, humilhações públicas e em meios digitais. A lista de constrangimentos relatados pelos calouros no trote da faculdade de medicina da Unisa (Universidade Santo Amaro), em São Paulo, é extensa”, inicia o texto. “Inclui faxinar a casa de veteranos, ajoelhar-se para ouvir xingamentos aos gritos, aceitar apelidos –inclusive de cunho racista–, seguir regras de vestimenta e de circulação, além de enviar ou receber fotos de genitais masculinos por redes sociais ou aplicativos de mensagens”, segue.

É que se isso fere diretamente a lei 10.454 do estado de São Paulo, que proíbe trotes “sob coação, agressão física, moral” e demais constrangimentos que ofereçam risco à saúde ou à integridade física, e sabendo de todo um histórico problemático de alguns alunos, como é que a Unisa afirma que só agora tomou conhecimento do que ocorreu e, dado isso, resolveu expulsar os alunos no tal “punhetaço”, como os próprios envolvidos apelidaram o ‘evento’? Se pessoas descontentes com a rotina de humilhação já denunciavam práticas abusivas à época em que a matéria foi ao ar, e falavam que aquilo perdurava no mínimo desde 2009, como a Unisa não sabia de nada do que ocorria dentro e fora de suas dependências?

Detalhe importante: pelo menos em minhas pesquisas, a instituição não respondeu aos 13 contatos feitos pela reportagem do UOL, que inclusive chegou a ir a 2 dos 4 campi. “A Unisa, instituição com mais de 55 anos de história, repudia veementemente esse tipo de comportamento, completamente antagônico à sua história e aos seus valores”, diz a nota emitida no último dia 18 de setembro. Calma lá… Isso é respeitar a história da instituição? Por qual motivo tais comportamentos violentos não foram combatidos anteriormente?

 

Acadêmicos do curso de medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa), em São Paulo, flagrados nus em competição esportiva (Imagem: Redes sociais)

Amigas e amigos, quantos homens com atitudes tão detestáveis já não se formaram, pela Unisa e tantas outras universidades, e hoje se veem fechados em um consultório com pacientes mulheres? Compreendem a gravidade do assunto? A lembrar do médico ginecologista, Wellington Florêncio, após ser preso em flagrante, em junho deste ano, por estuprar uma paciente dentro do consultório, em Pernambuco.

Tudo isso faz parte de uma cultura, é histórico, insiste em se repetir durantes os séculos e se nega a sair de cena nos tempos atuais.

Em minhas idas e vindas pelas redes sociais, me deparei com todas as opiniões possíveis – principalmente de homens. Tem quem classifique como o episódio como ‘inacreditável’, tem quem justifique a ação de se masturbar em público como ‘ato de euforia’, tem quem pede para que os autores não sejam ‘cancelados’, tem que ache essa uma atitude de “jovens inconsequentes”, e por aí vai.

Olhem só, isso não se trata de ‘cancelamento de jovens’, pura e simplesmente assim, mas de atos criminosos cometidos por adultos conscientes de suas atitudes. Não se trata de ‘estado de euforia de jovens’, mas de ações tipificadas no nosso Código Penal, artigos 215 e 233. Não se trata de um ato isolado, mas de uma série de ações irresponsáveis e cretinas que podem culminar, e culminam, em atos muito mais graves. Não se trata de algo incomum, e para isso basta olhar os casos como o de Roger Abdelmassih, que estuprou mais de 70 mulheres; Nicodemos Júnior Estanislau Morais, que violentou mais de 50; Cairo Roberto de Ávila Barbosa, que abusou sexualmente de 9 mulheres, entre elas grávidas; Celso Satoru Kurike, que abusou de, no mínimo, 12 mulheres.

Percebem como apenas esses quatro homens impactaram negativamente uma centena de mulheres? Compreendem as feridas profundas a que elas foram forçadas? Nada, absolutamente nada justifica um crime. Nada faz com que a gravidade de um absurdo seja minimizada. Nada justifica uma ‘passada de pano’, conscientemente ou não, a jovens da nossa ‘elite’ social, ‘eufóricos’ por conta da situação e que, portanto, resolveram correr nus e se masturbarem durante um evento esportivo, como se fosse algo plenamente normal. Não é normal que homens entoem livremente frases como “enfia o dedo nela que ela vai arreganhar” e acreditem que isso não é uma apologia ao estupro escancarada.

Tantos e mais tantos problemas. Nenhuma novidade numa sociedade moldada historicamente pela violência contra as mulheres. Até quando?

É isto.

 

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