‘Os Outros’, da Globoplay, entrega uma experiência visceral e nada distante de problemas modernos reais

 ‘Os Outros’, da Globoplay, entrega uma experiência visceral e nada distante de problemas modernos reais

Imagem: Divulgação

 

O texto a seguir não contém spoiler.

 

Se ‘Os Outros’ ainda está no ‘hype’, nos assuntos do momento nas redes sociais, eu não sei – ainda que desconfie que sim. Deveria! Certamente, a série da Globoplay permanecerá por muito tempo sendo motivo de debates, renderá reflexões sobre os absurdos modernos e continuará a escancarar que tudo pode mudar a qualquer momento, bastando um empurrão repentino, e também silencioso, da frustração.

É que ‘Os Outros’ mexe com alguns pilares fundamentais da nossa sociedade. Está tudo lá. A insegurança humana cerceada pelos muros ‘seguros’ do Barra Diamond – condomínio carioca em que boa parte da trama se desenrola. A violência entremeada e mascarada de proteção. As confusões internas que buscam refúgio em emaranhados de sentimentos alheios. A vida real tal como ela é – algo muito além de qualquer visão generalista que queira classificar um ou outro como bom ou mau. Trata-se de pessoas entregando suas inconstâncias e receios, bem como suas emoções e partes sensíveis de si, aos outros ou às coisas, esperando uma resposta confortável de todas elas. Ledo engano.

‘Os Outros’ ensina, talvez pelo extremo, que não há espaços para coadjuvantes quando quem conta uma história em tempo real, de dentro para fora, também é responsável por protagonizá-la a todo instante, ainda que de forma imperfeita. Ali, na trama, todos são protagonistas e todos são capazes de defender um lado – o próprio, é claro -, estando dispostos a qualquer coisa para isso. Basta um simples empurrão; e, como falei no início do texto, é a frustração que ocupa essa posição de lançar ao incerto as emoções de cada personagem, ficando a reatividade a critério do que cada um é ou pode, por um deslize ou intenção, se tornar.

É um retrato das inconstâncias, dos medos, do clima de insatisfação da classe média que emergiu ao longo dos anos 2000 juntamente com seus sonhos e esperanças, mas acabou dando de cara com o pesadelo da realidade brasileira. E nada disso é tão ficcional assim. Tanto não é distante, que de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), obtidos via Lei de Acesso à Informação, somente no estado do Rio de Janeiro, entre 2018 a 2022, 35.244 ocorrências de ameaça, lesão corporal dolosa, homicídio, tentativa de homicídio e feminicídio, envolvendo vizinhos, foram registrados. Tanto não é distante, que a corrupção miliciana contada ali, por exemplo, deixa de ser só uma história para convencer e entreter o telespectador, e toma ares de uma realidade possível. E isso assusta.

 

Adriana Esteves brilha novamente e entrega ótima personagem em Os Outros. (Foto: Divulgação)

É nesse ponto que a séria ataca. É nesse ponto que ela deixa muito claro que a imprevisibilidade, própria das situações, é real. É aí, no meio disso tudo, que você se pega tendo empatia por um e receio de outro; no entanto, no decorrer da história, tudo isso é desmontado para ser reconstruído, e na reconstrução você acaba compreendendo o motivo de cada um ser o que é, ainda que não justifique suas ações. Não à toa, todo início de episódio os atores encaram a câmera muito fixamente como se encarassem um espelho. O que, ou quem, estariam vendo? Para isso, Caetano já muito bem cantava: “quando te encarei frente a frente não vi o meu rosto/chamei de mau gosto o que vi/é que Narciso acha feio o que não é espelho”.

É uma série perfeita? Não, não é. Tem lá suas imperfeições, seus erros de gravação, sua relativa perda de fôlego ao longo dos 12 episódios, coisas muito caricatas que se confundem até com uma trama norte-americana dos anos 1980. Existem os excessos e exageros, mas tudo muito pontual. Nada que ótimas atuações – com destaque para o personagem Wando, brilhantemente interpretado por Milherm Cortaz, e Sérgio, vivido por Eduardo Sterblitch -, bem como uma fotografia excepcional, não cumpram o papel de isolar os defeitos para que os acertos sejam devidamente celebrados. Não perde em nada para outras grandes produções lá de fora, essa que é a verdade, e a Globo sabe muito bem que o caminho de ouro de seu investimento a médio e longo prazo deve ser esse mesmo, o da Globoplay.

A grande sacada de ‘Os Outros’, no final das contas, é demonstrar e provar por ‘A+B’ para todos nós que de nada adianta se distanciar ‘do que está lá fora’ buscando uma resposta plausível para a ausência – ou permanência em demasia -, do Eu em si mesmo. Os muros podem até assegurar uma tal tranquilidade formal, podem até vender o sentido de proteção aos seus moradores, mas e quanto tudo aquilo que ocorre do lado de dentro – do condomínio e em nossa mente? Até por esse motivo vem incomodando tanto e gerando gatilhos psicológicos em algumas pessoas.

De qualquer forma, a série tem o seu o seu valor, principalmente o reflexivo. O título ‘Os Outros’ esconde um segredo, tal como os muros do Barra Diamond, e eu revelo qual é sem estragar em nada a experiência visceral do todo: não é sobre os outros, propriamente dito, e sim sobre nós mesmos. Nós somos os outros para alguém, no mesmo tanto os outros são para nós, os outros. Assista e você vai entender o que eu digo.

É isto.

 

 

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