O jornalismo não pode ser adorno para o ódio ou objeto de contemplação para assassinos

 O jornalismo não pode ser adorno para o ódio ou objeto de contemplação para assassinos

Arte: Dereck Gomes

 

Amigas e amigos, a barbárie, tragicamente, continua a atravessar o tempo. O discurso de ódio, durante os séculos, manteve-se em alta chamando a atenção e pautando a violência. O efeito colateral disso, sem dúvida alguma, nós vemos por aí até os dias atuais, especialmente nos noticiários. De um colégio estadual, na zona oeste de São Paulo, à uma creche em Blumenau. De Fujihan, na China, ao massacre em Columbine, nos Estados Unidos. Ou chegamos a um consenso, enquanto sociedade, de que é necessário agir efetivamente contra a barbárie, ou seremos engolidos ainda mais pela normalização do absurdo.

Como profissional da comunicação, quero conversar com os colegas e falar sobre o que nos diz respeito. Vivemos em um tempo em que o jornalismo se transformou em adorno para o ódio, um objeto de contemplação para assassinos, e isso precisa ter um fim.

O Grupo Globo, por exemplo, acertou ao mudar sua política de cobertura de massacres após o ocorrido em Blumenau. Agora, as ações são ainda mais restritivas. O nome a imagem dos autores de ataques não serão mais publicados, bem como vídeos das ações. A decisão é assertiva e segue, inclusive, recomendações de especialistas que, entre outras coisas, apontam que a visibilidade dada pelos noticiários aos agressores pode servir de estímulo para que novos ataques aconteçam ou servir de “prêmio” para que assassinos e incentivadores da barbárie ganhem notoriedade, de alguma forma.

“Existe um fenômeno chamado efeito contágio. A partir do momento que você divulga, que você traz muita visibilidade para essa situação, de uma determinada forma, você acaba estimulando casos semelhantes. Assim que a notícia começou a circular [sobre o ataque à E.E. Thomazia Montoro, no bairro da Vila Sônia], a gente começou a ver, em vários veículos, vídeos do momento da agressão. Esse tipo de exibição é extremamente prejudicial”, comentou a jornalista, editora pública e de conteúdo da Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca), Marta Avancini, em matéria veiculada pela Agência Brasil.

Acontece que o desafio maior é fazer com que ações assim, como as que foram adotadas pelo Grupo Globo, tenham um alcance ainda mais abrangente. O problema é convencer os jornalistas de portais que sobrevivem basicamente de acessos, a repudiarem a barbárie e deixarem de publicar vídeos, fotos e demais materiais que incentivem que suas matérias sejam acessadas, gerando engajamento e alcance por meio da violência.

E isso é um fato. Matérias com teor violento geram muitos acessos, seja na grande imprensa, ou em portais de alcance menor. Quantas vezes entramos em contato com materiais grotescos, sem qualquer filtro de conteúdo? Fotos e vídeos de violência explícita completamente expostos, tudo em troca de acesso e, consequentemente, em busca de monetização. Isso ultrapassa qualquer limite do bom senso, chegando à discussão daquilo que é antiético. Está lá, no Código de Ética da profissão, no Art. 11º: “O jornalista não pode divulgar informações: […] II – de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”.

Problemas como esse passam inclusive pela discussão sobre a regulamentação da mídia, que muitos consideram censura, quando deveria ser vista e pensada como um pacto, um acordo social. Vi um tweet (@AnaCrisBarros) que dizia assim: “A barbárie alimenta a barbárie, que alimenta ideias e assim seguimos nesse banho de ódio e sangue. É preciso dar um fim nisso. A internet precisa parar de ganhar dinheiro com discurso de ódio”. O pensamento é corretíssimo e muito bem vindo. O discurso de ódio é um sistema que se retroalimenta, mas que ainda conta com os ‘feitos’ daqueles que preferem se manter alheios ao bom senso e à ética, ignorando qualquer conduta de cunho consciente e civilizatório.

A resolução do problema também está nos meios de comunicação. Passa diretamente por cada um de nós. É preciso repudiar que casos bizarros televisionados em certos programas – acessíveis em horário nobre da televisão, a qualquer um -, sejam considerados como fatos normais, corriqueiros. De igual modo, todos nós, de jornais regionais, precisamos também fazer um pacto como nos moldes daquilo que passou a ser adotado pelo Grupo Globo, evitando a veiculação de materiais que contribuam para o ‘efeito contágio’, apontado por especialistas. E isso nada tem a ver com “viver em conto de fadas”. Os crimes existem, persistem, e continuarão. Mas precisamos agir sobre o problema, e não contribuir para que assassinos se sintam satisfeitos e/ou que nossas matérias sejam objeto de adorno para o ódio.

“O jornalismo é, antes de tudo e sobretudo, a prática diária da inteligência e o exercício cotidiano do caráter”, disse certa vez Cláudio Abramo. Frase melhor não há para encerrar. Serve tanto para quem está compromissado com o jornalismo e com a responsabilidade na transmissão dos fatos, quanto para aqueles que não estão conectados com o exercício cotidiano do caráter, preferindo deixar de lado a prática diária da inteligência, da ética e do bom senso.

A resposta aos que se aproveitam do Jornalismo para os mais diversos fins precisa ser dada o quanto antes.

 

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