Submissão para aquelas que podem sustentar a fantasia, é lugar confortável; para outras, uma sentença de morte

 Submissão para aquelas que podem sustentar a fantasia, é lugar confortável; para outras, uma sentença de morte

Foto: Samantha Garrote

 

Amigas e amigos, escrevo esse artigo em 08 de março, dia em que o mundo “celebra” o Dia Internacional da Mulher. Coloquei a palavra “celebrar” entre aspas, mais como uma forma de expressar otimismo, ainda que as coisas, de fato, não sejam bem assim. Como homem, reconheço que ainda existem inúmeros, incontáveis obstáculos, que as mulheres precisam enfrentar diariamente. Preconceito, sexismo, machismo, desvalorização profissional… São tantos os percalços que o parágrafo se estenderia para muito além.

Senti necessidade de escrever, pois li uma reportagem há pouco que falava a respeito de uma influenciadora digital e autodeclarada ‘coach de emagrecimento’ que postou em suas redes sociais uma espécie de “nota oficial” como pontapé inicial para seu novo relacionamento. “No fundo dos seus olhos coloridos eu me encontrei, olhar que enxerga a minha alma! Eu encontrei o único homem que eu serei e desejo ser submissa todos os dias da minha vida, daqui em diante”, sentenciou a coach. Recuso-me a citar o seu nome aqui.

Neste mesmo 08 de março, em que a luta das mulheres, ao menos em tese, deveria se sobrepor em muito às declarações bonitinhas e às flores, que têm data de validade e um dia morrem, a tal influenciadora achou por bem enfatizar a sua submissão ao novo namorado. Não sei a opinião de vocês, mas isso, para mim, soa como infantil ou como uma espécie de declaração adolescente, até exacerbadamente mergulhada em fantasia, que carece de qualquer maturidade, bom senso e/ou visão periférica do real.

É que declarar submissão quando se está bem resolvida financeiramente, blindada por uma bolha de seguidores e pertencente a uma camada social mais elevada, é muito diferente da submissão imposta à força a milhares de mulheres, particularmente as mais pobres. A submissão, por vezes velada, a que mulheres pretas, pobres e de baixa escolaridade são forçadas a aceitar por parceiros agressivos e tomados pelo sexismo e pelo machismo, resulta, muitas vezes, em morte. Quando não morrem, essas mulheres são condicionadas ao pesadelo diário das sequelas profundas.

Ainda que a violência contra a mulher ocorra em todos os níveis sociais, das mais pobres às mais ricas, a forma como cada uma delas responde à violência é muito diferente. Quem possui uma situação financeira mais confortável, geralmente recorre aos meios privados de resolução de conflitos. Quem não possui recurso algum, ou recorre à delegacia da mulher mais próxima, ou simplesmente vai empurrando a situação do jeito que dá, até para não ser morta pelo homem. Não sou eu que estou afirmando isso da minha cabeça. Essas afirmações fazem parte de uma pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), conduzida pela pesquisadora Isadora Santo-Sé.

“A denúncia e a judicialização da violência não são sempre opções para mulheres mais pobres, principalmente aquelas que vivem em favelas, territórios onde a política e o poder Judiciário não costumam entrar para defendê-las. Isso é um problema quando temos como principal medida de prevenção ao feminicídio as Medidas Protetivas de Urgência (MPU), que são monitoradas pela Patrulha Maria da Penha”, afirma a pesquisadora. “Quando a mulher mora nesses territórios onde o Estado se materializa de formas que não para garantia de seus direitos, essas formas de proteção não são uma opção ou são limitadas. Tudo isso cria um cenário de maior vulnerabilização dessas mulheres, daí a importância de centros de referência e de atendimento psicossocial”, completa.

Mas será que a tal influenciadora da submissão, ou mesmo a esposa de um cantor sertanejo famoso – que também afirmou em suas redes ser adepta da submissão por entender que seu marido é “sacerdote e autoridade do lar” -, compreendem de fato o que a pesquisadora quer dizer? Elas têm dimensão das dificuldades que são impostas às mulheres? Elas se sensibilizam com aquelas que foram vítimas do horror e da barbárie? O que elas diriam sobre o caso da Adriana Costa de Alvarenga? Sobre a Emelly Nayane da Silva Ribeiro? E da Priscila Ferreira? Arlete Gomes Santos? E aí, faltou submissão a elas?

Um bom ponto de partida para ambas, a fim de se conscientizarem e serem mais responsáveis por aquilo que postam, seria dar uma olhada nisso aqui: todas as formas de violência contra a mulher aumentaram em 2022, aponta pesquisa. Será que convence ou sensibiliza?

Aliás, precisamos aqui mencionar outro ponto dessa questão. Essa influenciadora digital, que declarou submissão ao namorado, conversa diretamente com 8,7 milhões de seguidores somente no Instagram. Isso mesmo, são milhões de pessoas, entre adolescentes e adultos, que podem eventualmente normalizar um absurdo. São pessoas que podem passar, em algum momento de suas vidas, a tratar a submissão não como uma exceção à regra, mas uma regra sem exceção que valida, consciente ou inconscientemente, qualquer conduta, até aquelas mais violentas e invasivas.

E aqui eu reforço: não, homem NÃO tem direito sobre o corpo e as decisões da mulher. Não acreditem nessa estupidez, culturalmente aceita e propagada por muitos. Vou além! Nem ao menos cabe a nós, homens, afirmarmos que as mulheres devem ser independentes e livres, pois a partir do momento em que nós, enquanto homens, proferimos isso, o que fica subentendido é que estamos dando uma espécie de aval para que elas possam ser independentes e livres. Conseguem compreender a questão?

Nesse Dia Internacional da Mulher, que possamos refletir sobre os insistentes retrocessos da nossa sociedade em pleno século XXI. Muito além da bolha social a que muitos estão submetidos ou se submetem, existe o mundo real, que não vive de like e engajamento, mas de episódios concretos e, por vezes, trágicos. Para cada mulher que decreta submissão, existem outras tantas que são vítimas de homens descontrolados e agressivos, que colocam a vida de suas parceiras em risco.

Questiono. É muito difícil ensinar empatia? É muito árduo olhar para o lado? Quão desconfortável é para um influenciador furar a sua própria bolha para se colocar na pele de quem sofre? É cobrar muito que essas pessoas criem responsabilidade pelo “estilo de vida” que influenciam às demais?

Mais triste ainda de tudo isso, é que em seus stories, no Instagram, a tal coach de emagrecimento não entendeu os motivos que levaram a imprensa a ignorar uma “nota oficial” tão romântica, escrita com palavras tão bonitas e amáveis. Quase um conto de fadas moderno. Como assim a imprensa está falando mal da influencer somente por se declarar como submissa ao seu parceiro? Que ridículo esses jornalistas que só sobrevivem de críticas e fofoca, não é mesmo?

Mau-caratismo ou inocência? Estratégia de marketing ou engajamento a qualquer custo?

A resposta é com vocês.

 

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