Minha pequena biblioteca abriga um dos livros que costumo recomendar a todos que tenho a oportunidade, especialmente quando o assunto são os horrores causados pela Segunda Guerra Mundial. Nele, está a história real de um sobrevivente de um dos episódios mais lamentáveis que a história da falta de humanidade, tragicamente, presenciou. O livro em questão é “Em Busca de Sentido”, do neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl.
Entre as muitas passagens impressionantes, sem dúvida alguma a figura do “Capo” foi uma das que mais me chamou a atenção neste livro. Os Capos, resumidamente, eram prisioneiros que haviam passado por dezenas de outros campos de concentração durante anos, ou, como o próprio autor define: “eram resultado de uma espécie de seleção negativa: para esta função somente se prestavam os indivíduos mais brutais, embora felizmente tenha havido, é claro, exceções”.
O método de sobrevivência dos mesmos era o de não ter escrúpulos. Não hesitavam em utilizar métodos violentos em suas ações, ou mesmo trair outros colegas na prisão. A recompensa era um lugar mais “próximo” – mas incontáveis degraus abaixo – dos guardas da Schutzstaffel, a SS nazista. Pelo favores “especiais”, os Capos recebiam algumas regalias em troca, como maços de cigarro e talvez um tempo a mais de vida no campo de concentração em que estavam. Já aqueles que eram denunciados pelos Capos, encontravam indubitavelmente a morte nas mãos da polícia nazista.
Essa e diversas outras cenas de horror causadas pela Segunda Guerra Mundial fizeram acender o alerta do mundo para a capacidade humana de produzir brutalidade em cima de irracionalidade. O psicólogo Stanley Milgram está aí, com o seu experimento, para provar que basta um incentivo ao pior, para que o mais violento se expanda.
De tempos em tempos, é de suma importância que a humanidade tome uma dose de reforço de consciência para evitar o adoecimento por inconsciência diretamente ligada à brutalidade. Porém, como devemos agir, enquanto sociedade, quando o horror, mesmo presenciado por muitas pessoas em famosos e prestigiados tours de museus pela Europa, por exemplo, já não impressionam tanto assim? E quando lemas autoritários do passado voltam a permear a esteira do debate social, contaminando e separando “puros” de “impuros”? O que fazer quando o primeiro movimento da mentira viral, é o de pretender aniquilar toda e qualquer oposição a si?
Caro leitor, cara leitora, o que fazer quando chegamos em um momento da história em que começamos a questionar, REALMENTE, se esse ou aquele teria a capacidade de agir como um Capo, caso o intuito deste fosse ganhar uns maços de cigarro e/ou alguns dias a mais em meio ao terror, como forma de retribuição pelo desaparecimento de alguém?
O holocausto que Viktor Frankl presenciou, vale lembrar, foi um dos resultados finais de uma perversidade que começou muito antes, mas que grande parte da Alemanha não soube ou não quis perceber assim que esta se iniciava.
Para que o delírio mergulhado no brutal aconteça, basta que a intransigência transite em plenas liberdades por aí. Que o transe coletivo irracional encontre razão de ser nas mentes férteis, que facilmente se deixam levar pelo embalo do perverso. Que alguma seita encontre uma nova vítima e essa, por fim, seja mais uma a engatilhar e disparar contra a própria capacidade de compreensão do real. Que a mentira passa a reescrever a história, alienando o passado, subvertendo o presente e autoproclamando-se algum futuro.
Para encerrar, sou adepto de Karl Popper, e se pudesse, também o indicaria a todos que conheço por aí. Prefiro lutar com palavras do que com armas, pois, assim como Popper, também acredito que isso é o que constitui o fundamento da nossa civilização.
Talvez isso contribua para que alguém – que ainda insiste em se convencer com o delírio reencarnado da incivilidade -, volte a frequentar o templo sagrado da racionalidade.