quinta-feira, novembro 21, 2024
spot_img

“Para combater a violência contra a mulher é preciso conscientizar os homens”, afirma delegada Renata Cruppi

Por Natália Bassi

Um caso de feminicídio envolvendo mãe e filha em Divinópolis, Minas Gerais, chocou o país por tamanha brutalidade. Ambas foram mortas dentro de casa após, segundo a polícia, o ex-companheiro da mulher golpeá-la com uma faca e colocar fogo na residência. Elas possuíam 36 e 12 anos, respectivamente. O crime, que aconteceu no dia 30 de maio, é mais um que entrou nas estatísticas de mulheres que foram mortas somente por serem mulheres. A triste realidade, que se repete diariamente, é fruto de uma sociedade ainda muito guiada pelos dogmas patriarcais, que por não se permitir desconstruir, valida que mulheres e meninas sejam ameaçadas, violentadas, espancadas e mortas pela sua condição de gênero.

Segundo apontou a Agência Patrícia Galvão, com base nos dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, três mulheres são vítimas de feminicídio a cada 24 horas no Brasil. Além disso, 30 mulheres sofrem agressão física por hora e uma mulher é vítima de estupro a cada 10 minutos.

Um levantamento divulgado em 2019 também pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apontou que 16 milhões de mulheres com mais de 16 anos sofreram algum tipo de violência no Brasil, a maioria delas em casa. A realidade, porém, pode ser bem mais complicada porque muitas delas nem sequer denunciam. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha em 2019 revelou que 52% das mulheres que foram vítimas de violência em 2018 não fizeram boletim de ocorrência relatando a situação à qual foram submetidas.

O medo, a insegurança, a dependência financeira e a incerteza do apoio são elementos fundamentais para que essas vítimas muitas vezes optem por permanecer dentro de um relacionamento abusivo em que as agressões são rotineiras e o risco à sua vida uma realidade. Dentro de um ciclo de violência tão cruel, o feminicídio é a última instância. A mulher, antes de ser brutalmente assassinada, já foi submetida a inúmeras situações humilhantes e violentas por parte do seu agressor.

De acordo com a delegada de Polícia de São Paulo, especialista na atuação preventiva de violência de gênero e violência doméstica e familiar, Dra. Renata Cruppi, que conversou com a reportagem do Voz Diária, o feminicídio pode acontecer em diferentes cenários e não exclusivamente por parte de companheiros ou ex-companheiros.

Falar de feminicídio é algo bem complexo. É um crime de ódio, é um crime pré-anunciado e acontece também em situações onde não há violência doméstica familiar, mas há o ódio pela mulher pelo simples fato dela ser mulher”, explica.

 

Os canais de ajuda e acolhimento

Apesar de muito difícil, a busca pelos canais de ajuda e acolhimento pode ser o único ato capaz de fazer uma mulher resistir e sobreviver. De acordo com a Dra. Renata Cruppi, a assistência dada às vítimas nesses locais, a fortalece e ajuda na quebra do ciclo de violência.

“É muito importante procurar os serviços de acolhimento às mulheres em situação de violência doméstica. É muito difícil ela conseguir entender o trauma e externar a sua dor em um primeiro momento. Mas quando ela procura esse centros de acolhimento, ela vai ter a assistência de uma psicóloga, de uma assistente social e vai se acalmar, vai se se sentir acolhida, vai se sentir com mais condições de descrever tudo o que passou e, assim, permitir que haja o registro do boletim de ocorrência ou fortalecimento dela para que ela ressignifique a importância dela como pessoa, busque a independência, a autonomia, a liberdade financeira”, explica.

Para denunciar, hoje há um amplo canal gratuito de atendimento. Um deles é o Disque 180, criado pelo Governo Federal, que recebe queixas de assédio e de violência contra a mulher. No programa, o socorro não é imediato, mas a denúncia é enviada aos órgãos competentes para que as medidas cabíveis sejam tomadas. Vale lembrar que não é necessário que a vítima faça a denúncia. Se outra pessoa souber ou presenciar cenas de violência contra a mulher, ela também pode entrar em contato com o número, que funciona todos os dias da semana, 24 horas por dia.

 

Imagem: Rosie Sun @rosiesun

Agora, caso a agressão tenha acabado de acontecer ou a vítima esteja em uma situação iminente de risco à integridade física ou à vida, a Polícia Militar (PM) ou a Guarda Civil Municipal (GCM) podem ser acionadas por meio dos telefones 190 e 153, respectivamente. Tanto um quanto o outro, darão respaldo à vítima, encaminhando-a ao hospital caso seja necessário e fornecendo transporte até as delegacias, para que um boletim de ocorrência possa ser registrado.

Outro órgão responsável pelo atendimento às mulheres em situação de violência são as coordenadorias municipais e estaduais, que oferecem auxílio psicológico, jurídico e social às vítimas. O equipamento em si não é responsável por incriminar legalmente o agressor, mas funciona como um braço da rede de acolhimento para prestar todo apoio às mulheres que passaram pela situação de violência.

O sistema de Justiça do Brasil também está preparado para atuar nestes casos por meio da Defensoria Pública e do Ministério Público, através dos Núcleos de Gênero e Conselho Nacional. O trabalho feito em rede faz valer a Lei Maria da Penha, protegendo a vida da vítima e dos filhos, caso tenha, além de enquadrar o agressor nos termos legais, como o afastamento da residência, as medidas protetivas urgentes, a restrição ou suspensão das visitas aos filhos menores e o pagamento de pensão.

A Dra. Renata Cruppi lembra da importância também das Ong’s e dos coletivos na questão do acolhimento, já que as vítimas ficam extremamente fragilizadas e precisam ser ouvidas e abraçadas.

“A mulher, quando ela tem um local para buscar esse auxílio, ela se sente pertencente, mas pertencente não só àquele núcleo, aquele serviço, ela se sente pertencente a sua própria vida, a sua própria importância. Ela permite olhar para si, ela não se anula porque ela percebe que pessoas que não a conhecem, que não tem ideia da realidade que ela vive, pelo fato dela estar em sofrimento, estão acolhendo. Ela sempre olha no sentido de ‘poxa, mas a pessoa que eu amei ou que eu amo, não me valorizou, não me valoriza e pessoas que não me conhecem, estão me valorizando’. Então ela vê isso como algo extremamente incrível e ela começa a quebrar a resistência, o medo de falar e não ser ouvida. Ela começa a entender que pode externar e que se ela tiver medo, insegurança, terão pessoas ao lado dela para auxiliá-la e fortalecê-la”, explica.

A tecnologia como forma de ajuda

Sabendo da dificuldade em denunciar por medo ou insegurança, diversos programas foram criados com o intuito de ajudar essas vítimas a enfrentarem seus agressores e procurarem a Justiça. Uma dessas iniciativas partiu da empresa Magazine Luiza, que decidiu integrar em seu aplicativo Magalu um botão para denúncia. Ela pode ser feita sem alarde enquanto a mulher realiza uma falsa compra. Ao acioná-lo, a vítima, automaticamente, tem o seu pedido de socorro enviado ao 180 e ele passa a ser contabilizado pelo sistema do Governo Federal.

 

Imagem: Rob Hampson @robman

Na iniciativa privada, também há o “Mete a Colher”, um projeto que nasceu em 2016 de uma startup que usa a tecnologia a favor do combate à violência de gênero. Com o objetivo de desmistificar o ditado “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, a empresa conecta as vítimas com voluntárias por meio de um aplicativo para que as acolhidas consigam abandonar o relacionamento abusivo e rompam definitivamente o ciclo de violência em suas vidas.

O Isa.Bot, que também conta com o apoio de grandes instituições privadas, como o Facebook e o Google, soma-se às ferramentas tecnológicas utilizadas no combate à violência contra mulheres. Desenvolvida pelo projeto Conexões que Salvam, da ONG Think Olga, e pelo Mapa do Acolhimento, dos Nossas.org, a robô fornece informação, segurança e acolhimento para mulheres que foram alvo de violência de gênero online. Para acionar o serviço, as interessadas podem chamá-la no chat do Facebook ou no Google Assistente, dizendo “ok, Google! Chamar Isa Robô”.

No Estado de São Paulo, outra medida do Governo Estadual tem se tornado importante para as mulheres que já conseguiram na Justiça uma medida protetiva. Desenvolvido pela Polícia Polícia Militar do Estado de São Paulo, o SOS Mulher permite que as mulheres que já estão sendo assistidas pela rede de proteção acionem socorro caso o agressor descumpra a ordem de se manter afastado. Nesses casos, com a chegada de uma viatura, o ex-companheiro pode ser preso em flagrante porque desobedeceu uma ordem judicial.

As vítimas também podem baixar o aplicativo Penha’s. Nele, elas podem conversar com voluntários, se informar sobre os endereços das delegacias da mulher, aprenderem sobre a produção de provas contra o agressor, além de obterem informações pertinentes sobre a Lei Maria da Penha.

A doutora Renata Cruppi enfatiza que toda ação que venha para auxiliar essas vítimas é bem-vinda e ajuda na luta da quebra do ciclo de violência, principalmente no que tange a punição ao agressor.

Os grupos de mulheres, as Ong´s, institutos, todo o tipo de trabalho é bem-vindo, desde que haja o acolhimento humanizado dessa mulher. Que permita, no tempo dela, revelar o que está acontecendo. E naquelas hipóteses, onde a legislação nos permite agir independente da vontade dela, é importante também que façamos isso”, salienta.

 

A desconstrução da sociedade como mecanismo para combater a violência contra a mulher

Falar de violência de gênero não é restringir a pauta somente a leis que amparem as mulheres que sofreram com esses tristes episódios ou que punam os agressores. É preciso ir além e entender que a sociedade também tem um papel fundamental para que a violência se rompa. A doutora Renata Cruppi defende que para os índices de violência contra a mulher diminuírem no país a desconstrução dos homens é essencial.

 

Imagem: Ben Sweet @benjaminsweet

O combate a violência contra a mulher e as meninas terá muito mais efetividade a partir do momento que os serviços, as campanhas, os trabalhos sejam feitos voltados para o homem, para que ele se conscientize do que ele tem feito, do papel dele na sociedade, da necessidade do rompimento da cultura patriarcal que é extremamente focada nos interesses masculinos, deixando a mulher em segundo, terceiro, quarto plano, dependendo do caso. Nós precisamos ressignificar comportamentos, ressignificar falas, ressignificar linhas de conduta para que possamos mudar a realidade”, defende.

Idealizadora do Projeto Homem Sim, Consciente Também, que consiste na adesão voluntária de homens com histórico de agressão às companheiras, esposas e/ou filhos, por meio de grupos reflexivos que contam com atendimento de psicólogos e assistentes sociais, ela é enfática ao falar sobre a necessidade desse tipo de trabalho ter mais abrangência no país.

“Nós precisamos dar voz às mulheres, validando aquilo que ela expressa, validando a sua realidade, não colocando em dúvida os crimes e casos que nós vemos. Mas na questão de trabalhar do homem eu vejo como extrema importância, porque não há quase trabalhos onde se permite que o homem reflita sobre o que ele tem feito, o que ele aprendeu, se realmente é aquilo. Muitos homens são violentos porque eles aprenderam que para ser homem ele precisa ser violento, não pode respeitar a mulher, não pode estar em uma situação de vulnerabilidade. Então muitos buscam na violência, na droga, nos vícios diversos uma forma de camuflar a dor e a insegurança que ele sente. E quando damos ferramentas para ele agir como uma pessoa com conduta correta, com conduta de acolhimento, conduta de humanidade, nós vemos mudanças significativas”, afirma.

Questionada sobre quais são os passos mais importantes a serem tomados para que o Brasil deixe de ser um dos países que mais mata mulheres em todo o mundo, ela ressalta a necessidade do investimento na educação e na conscientização.

Nós não venceremos a violência contra as mulheres e as meninas só com a punição, com o trabalho da segurança pública. Nós venceremos a partir do momento em que investirmos na saúde, na educação e em políticas públicas voltadas para a ressignificação do comportamento do homem e o fortalecimento e a autonomia da mulher. Esses são pilares essenciais para que possamos começar a avançar e a reduzir esse tempo que o Fórum Econômico Mundial apresentou de mais de 130 anos para o alcance da igualdade entre homens e mulheres”, salienta.

Ela lembra que mesmo com toda a rede de proteção já estabelecida e com os programas que visam prevenir e combater a violência doméstica, é preciso trazer essa luta para a esfera não só coletiva, mas também individual. Estabelecer um debate amplo sobre a questão é necessário, mas o combate também pode ser feito no âmbito particular. Um indivíduo, ao tomar consciência sobre quão aterrorizante é o cenário para uma mulher na sociedade, deve se tornar replicador desta informação no seu ciclo social para tentar estabelecer um diálogo com aqueles que já naturalizaram e reproduzem a violência em larga escala.

Se cada um conseguir falar nas suas rodas de conversa, ressignificar algumas piadas e comportamentos, validar o trabalho da mulher da mesma forma que valida do homem, sem a necessidade dela ter que provar duas, três vezes ou mais do que se fosse um homem fazendo, nós vamos conseguir então olhar mais as necessidades femininas. Vamos conseguir a igualdade de gênero, a redução da violência doméstica e familiar, e também a violência contra as mulheres e as meninas em outras áreas”, finaliza.

 

Outras matérias

Anúnciospot_img

Últimas notícias